CARLOS SANTIAGO – Arrependimento e o medo do desembargador aposentado
Caminhava com pouca saúde rumo ao quarto de dormir, carregando nas mãos escritos do pai da metafísica moderna. Agora, aposentado, não recebia mais visitas e nem telefonemas. Parecia um morto vivo. Lobistas, antigos colegas oportunistas e bajuladores que viviam em seu gabinete lhe oferecendo medalhas de honra ao mérito, sumiram.
Tinha vontade de contar tudo que viu e ouviu nos bastidores daquele Poder em que trabalhou por décadas. O arrependimento e o medo transformavam seus últimos dias em tormentos psicológicos. Não era um santo, impossível ser um naquele ambiente. Conhecia o jogo do poder, os grandes interesses encrostados na administração e no setor privado.
Sabia que a morte é inevitável, por isso, queria deixar tudo escrito. A situação dos Concursos Públicos fraudados, nos quais partilhava cargos entre familiares, cujos critérios eram o parentesco e o conchavo com amigos, devia ser coonestados. Tinha medo de sofrer retaliações.
Várias vezes teve arrependimento. Em um certo dia, desejava publicar, por meio de cartas, o segredo de como os filhos e netos de seus colegas montavam escritórios para ganhar ações milionárias devido à influência de país e avós, mas acabou não escrevendo. A sua covardia deixou até mesmo o seu cachorro Argos decepcionado, visto que o animal nem sentia mais alegria perto dele.
No local onde ele deixou de exercer a nobre carreira de Estado, os servidores de confiança não eram escolhidos pela competência. Os salários e as funções gratificadas baseavam-se no tráfico de influência e no “beijão nas mãos” e das seguintes frases: “sim, senhor; sim senhora! Todo Natal o pagamento do “Auxílio Papai Noel” envolvia a todos. O valor possibilitava comprar peru o ano inteiro. A verba distribuída era bastante vantajosa.
O aposentado lembrava dos valores dos penduricalhos que ultrapassavam aos ganhos do chefe de Estado. Milhões foram pagos, outros milhões ainda iriam cair nas contas ao longo dos anos, enquanto os pobres sem dentes não tinham comida e água purificada para beber. Dizia que deveria acabar com essa imoralidade diante de tanta miséria. Porém, o medo de ir contra essa situação o impedia de um possível ato de coragem.
Em um dia de calor infernal, resolveu romper com o medo e com o sentimento de arrependimento. Estava corajoso e determinado. Segurou uma caneta e começou a escrever um livro sobre tudo de errado que tinha praticado, vivenciado e ouvido nos gabinetes do Poder julgador de conflitos. Três minutos depois, começou a passar mal, um infarto fulminante levou o velho magistrado. A única frase que conseguiu escrever foi: “a corrupção não deixa a Ilha de Vera Cruz ser justa”.
Os familiares gritavam pelo seu nome para tomar café. De repente o aposentado acordou. Tudo foi um pesadelo. Quando dormia tinha pesadelos sobre o passado. Para superar a insônia, lia autores clássicos, e naquela noite a obra Meditações de Renê Descartes foi o seu consumo.
Antes de levantar da cama, tocou a si mesmo, olhou-se no espelho, depois leu novamente trechos dos escritos de Descartes, especialmente a parte que o filósofo ensina que é difícil diferenciar o sono do estar acordado. O homem fechou o livro, pensou na sua vida e chorou. Uma eterna dúvida o consumia: não sabia se estava morto ou vivo.
*Sociólogo, Cientista Político e Advogado.