BRUNO AGUILAR SOARES – Um novo Fisco para um Brasil pós-reforma

De acordo com Manuel Castells, em sua renomada obra A Sociedade em Rede, ‘as sociedades mudam através do conflito e são geridas pela política’. Nesse sentido, os últimos dias têm sido de muita discussão em função dos possíveis impactos da reforma tributária apresentada no congresso nacional, assim como de uma forte apreensão em decorrência das mudanças que poderão advir do modelo proposto.

Com efeito, ultrapassadas as questões normativas, é certo que um novo regime de tributos também demandará uma nova atuação das administrações tributárias, que se já apresentavam sinais de esgotamento frente às dinâmicas de gestão econômica, fiscal e corporativa da atualidade. Enfrentarão desafios ainda mais complexos com o desenvolvimento e governança da sistemática tributária no período pós-reforma.

Nesse contexto, para contribuir com este debate, listamos algumas características que podem aprimorar o papel deste reformulado Fisco, que, fatalmente, precisará se adaptar aos ditames inovadores de uma realidade em mutação, e segundo as nuances de uma sociedade cada vez mais digital e em rede. Sendo assim, passamos a detalhar tais aspectos:

Flexibilidade

Para se manter alinhada às mudanças constantes de uma sociedade demandante de inovação, eficiência e serviços digitais, esta administração tributária precisará ser mais flexível e capaz de se adaptar às tecnologias emergentes e formas diversas de trabalho. Isso inclui a efetivação de uma Lei Orgânica do Fisco, do Código Geral de Proteção ao Contribuinte, a revisão do papel das carreiras fazendárias, e o dimensionamento adequado de seu quadro de servidores, levando em consideração a digitalização dos processos e a possibilidade de realização das atividades em sistema presencial, híbrido ou remoto.

Colaboração

Uma administração tributária eficiente deve fortalecer a colaboração com outras instituições e entidades, como empresas, organizações da sociedade civil e agências governamentais, para alcançar seus objetivos. Neste sentido, será essencial ampliar a integração da atuação em rede na área financeira, tributária e fiscal, compartilhando informações e promovendo o enfrentamento conjunto às práticas lesivas de fraudes estruturadas. Além disso, a criação de mecanismos de efetiva interação e harmonização entre contencioso administrativo e judicial, que afaste a cultura de excessivo enfoque no litígio, também será fundamental para solução otimizada das controvérsias tributárias.

Automatização de processos

A constante automatização de processos é uma ferramenta poderosa que permite à administração tributária processar grandes volumes de dados de forma mais rápida e eficiente. Isso resulta em redução de erros e custos para a sociedade, além de aumentar a eficácia governamental. Um exemplo prático dessa automatização será a padronização nacional dos códigos de produtos para simplificação da emissão de Documentos Fiscais Eletrônicos (DF-es), com motor de regras tributárias automatizadas, possibilitando a declaração fiscal assistida ou pré-preenchida pelo próprio Fisco, sem maiores esforços para o contribuinte. Além do mais, tal automatização viabiliza a eficácia da tributação do comércio eletrônico, em especial dos serviços digitais como computação em nuvem e pagamentos, a responsabilização fiscal dos marketplaces internacionais, e a disponibilização de plataformas de conformidade fisco-tributária para as pequenas empresas, dentre outras operações digitais que poderão ser controladas com a automatização dos processos, no enfoque de uma base tributária ampla proposto pela reforma.

Uso de tecnologia

Neste novo cenário a administração tributária precisará utilizar ainda mais tecnologia para coletar e analisar informações fiscais, identificar fraudes e evasão fiscal, e se comunicar ativamente com os contribuintes. A melhoria da relação com a sociedade e o desenvolvimento de soluções a partir da visão do usuário, com interfaces intuitivas e amigáveis, são aspectos fundamentais nesse contexto, e que incentivam o cumprimento voluntário das obrigações. Ademais, a utilização de tecnologias de rastreabilidade logística, como câmeras, drones, antenas, balanças móveis etc., bem como o uso de blockchain para elaboração de registros públicos transparentes, imutáveis e rastreáveis, são exemplos concretos de como o Fisco pode aproveitar a tecnologia em benefício de suas competências e da sociedade. A aplicação constante de sistemas de mineração de dados e inteligência artificial também será uma estratégia indispensável para lidar com a complexidade das informações fisco-contábeis e aprimorar a detecção de fraudes estruturadas.

Integração de sistemas

Para reduzir a burocracia, a administração tributária deverá fortalecer a integração de seus sistemas com os sistemas das empresas e dos órgãos de controle. Isso facilita a troca de informações e agiliza os processos, tornando o acompanhamento do cumprimento das obrigações fiscais mais eficiente e célere. É fundamental que a administração tributária integre o controle sobre os novos meios de pagamentos e de tributos, implementando sistemas de retenção e distribuição da arrecadação (Split Payment), com soluções dinâmicas e automáticas sobre os pagamentos digitaisrealizando a retenção do tributo pelo fluxo financeiro das operações, nos moldes que ocorre atualmente com os marketplaces. Com efeito, a adoção de um conceito de Fisco como serviço à sociedade, contribui para facilitar a integração entre diferentes entes governamentais. Exemplos práticos dessa integração incluem a ampliação da colaboração do Operador Nacional dos Estados (ONE) com agências reguladoras e a integração com o Banco Central e o Sistema de Pagamentos Brasileiro para fiscalização financeira.

Análise de dados

Com o aumento do volume de dados fiscais disponíveis, a administração tributária poderá se beneficiar da análise estatística para identificar padrões, detectar fraudes e evasão fiscal, e gerar valor informacional para a sociedade. Deste modo, o Fisco deve se tornar um provedor de informação estratégica para o Estado, sociedade e até mesmo empresas, baseando-se em pesquisas aplicadas a setores econômicos e dinâmicas de mercado. Logo, a partir dessa análise econômico-fiscal será possível massificar o desenvolvimento de sistemas para cálculo específico das renúncias fiscais, com base em DF-es e declarações, a disponibilização de informações sobre circulação de pessoas e valores, e a utilização de sistemas para comparação de preços em licitações, além de alertas para detecção de fraudes, sonegação e lavagem de dinheiro.

Comunicação digital

Em uma sociedade cada vez mais digital, é essencial que a administração tributária ofereça múltiplos canais de comunicação, para que os contribuintes possam obter esclarecimentos e resolver problemas de forma rápida e eficaz. A expansão da transformação digital e o uso intensivo de inteligência artificial, como chatbots, auxiliam na demanda por consultas e atendimentos aos contribuintes. A administração tributária também poderá implantar consultas à legislação tributária por meio de ferramentas inteligentes, simplificadas e com foco no usuário. Nesse sentido, será importante a utilização de uma linguagem mais atraente e simples, aderente ao público-alvo, assim como explorar estrategicamente a participação em redes sociais para melhorar a comunicação com a sociedade de maneira ativa.

Transparência

A busca crescente pela ampliação da percepção de transparência será essencial para fortalecer a confiança entre a administração tributária e os contribuintes, entre sociedade e Estado. Portanto, a administração tributária deverá priorizar o fornecimento de informações claras e acessíveis sobre suas políticas e procedimentos, promovendo a transparência nos gastos públicos e a divulgação de sua política fiscal. Para isso, é importante desenvolver ferramentas que permitam a verificação simplificada dos gastos e serviços disponibilizados pelo governo, em formato acessível à sociedade e entidades de controle público ou privado. A melhoria dos mecanismos de monitoramento dos gastos públicos também contribui para a transparência e a avaliação criteriosa dos resultados apresentados.

Participação dos cidadãos

Um Fisco que pretender inovar sua atuação nos próximos anos, deverá abrir mais espaço para a participação ativa dos cidadãos na tomada de decisões e na definição de políticas fiscais. Desta forma, será necessário promover algumas revisões das políticas tributárias para um foco prioritário em incentivos ao meio ambiente, diversidade e sustentabilidade, e assim fomentar a participação em grupos de discussão, de modo a melhor compreender as demandas sociais, são medidas que podem ser adotadas. Logo, será indispensável a criação de canais de diálogo alternativos entre a administração tributária e os contribuintes, buscando ouvir e considerar suas perspectivas e necessidades.

Educação fiscal

É sabido que a educação fiscal desempenha um papel fundamental na conscientização dos cidadãos sobre a importância dos tributos e o cumprimento voluntário de suas obrigações fiscais. Neste novo contexto deverá receber ainda mais destaque. Com a utilização de tecnologias emergentes, por meio de uma plataforma de capacitação compartilhada e colaborativa, que envolva agentes impulsionadores da sociedade, será possível desenvolver a educação fiscal de forma mais eficiente e massificada. Essa educação deve ser orientada não apenas para a conscientização, mas também para as repercussões sociais e ambientais do pagamento de tributos. O uso de novas tecnologias, como vivências em metaverso que abordem as dinâmicas tributárias de maneira interativa, podem tornar a educação fiscal ainda mais atraente, inclusiva e engajadora para os educandos.

Segurança de dados

A segurança dos dados dos contribuintes é uma responsabilidade primordial da administração tributária. Por isso, será necessário implementar medidas de proteção contra ataques cibernéticos e vazamentos de informações, cada vez mais robustas neste contexto de intensa digitalização dos serviços prestados. É necessário que se discuta com profundidade questões como a utilização e compartilhamento de dados fiscais, os dilemas relacionados ao sigilo fiscal e pessoal, e os desafios e oportunidades oferecidos pela computação forense e a mineração de dados em nuvem no combate às organizações criminosas e suas fraudes estruturadas.

Responsabilidade social

Por fim, a administração tributária deve considerar o impacto social e ambiental de suas políticas fiscais, promovendo a justiça fiscal e a sustentabilidade. A consolidação de um modelo de planejamento e orçamento de médio prazo, que leve em conta a inclusão social e a sustentabilidade ambiental, é uma medida eficaz nesse sentido. Também será importante implementar fundos específicos para períodos adversos e avaliação transparente dos resultados das políticas públicas para os segmentos mais vulneráveis da sociedade. A devolução de impostos vinculados a beneficiários de programas sociais, a definição de índices de promoção de emprego vinculados a políticas fiscais, e o desenvolvimento de índices de políticas públicas com impacto no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), são exemplos práticos de como o Fisco pode promover a responsabilidade social no Brasil pós-reforma tributária.

Portanto, ainda que não exaurientes, entendemos que as características elencadas acima são elementos essenciais para uma transição mais segura e planejada pelas administrações tributárias, de forma a mitigar maiores riscos e impactos negativos, bem como assegurar maior confiança aos contribuintes acerca do novo modelo. Sendo assim, a aplicação dessas medidas, neste período conturbado de mudanças, pode não apenas contribuir para o aprimoramento e simplificação do sistema tributário de maneira mais harmônica, mas também promover uma maior segurança jurídica, justiça fiscal e sustentabilidade em todas as esferas desta sociedade em rede.

Auditor Fiscal da SEFAZ-ES e Lider Nacional ENCAT da Nota Fiscal do Consumidor Eletrônica (NFC-e)

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