ROBÉRIO BRAGA – Manaus: amor e sofrimento (2)

Robério Braga

Procurando reviver os tempos de glória artística, de apogeu da economia da borracha e respirando ares de todo salubres que agora nos faltam, o poeta de antanho resolveu batizar a capital amazonense com o título de “Cidade Sorriso”, exaltando as belezas de sua arquitetura, o paisagismo e bucolismo de suas ruas, avenidas, largos, praças e balneários, e a exuberância de seus monumentos urbanos. 

Era comum ler nos jornais, ouvir nas esquinas, assim como perceber os cochichos simpáticos entre pessoas influentes proclamando o solo “baré” como cidade sorriso, conforme contavam os mais antigos.

Este gentil apelido há de ter representado, certamente, a feliz memória de tempos idos nos quais as calçadas de pedras, os faróis a gás, os bondes elétricos, as roupas de estilo francês, os trajes de linho irlandês, os cabarés de “polacas”, o canto dos italianos carregando pianos que ornavam as boas casas de residência, as praças bem traçadas e bem cuidadas engoliam, sufocavam e mascaravam a dor e o sofrimento de milhares de homens explorados no interior dos seringais dos altos rios, muitas vezes submetidos ao tronco imposto por alguns seringalistas em plena selva, enquanto as febres não os dizimavam.

A riqueza durante muito tempo e depois a réstia da riqueza atordoavamalgumas famílias, propiciavam saraus de qualidade no Teatro Amazonas, a ostentação do Palacete Scholz, do Palacete Nery, do Castelo da Vila, dos gradis importados de Glasgow, das esculturas de arte sofisticadas para mausoléus, do cabo telegráfico subfluvial interligando Manaus a Europa, dos modernos serviços públicos prestados pelos ingleses, dos clubes de elite expandindo os saraus, tudo isso em uma forma de vida que parecia não ter fim, mesmo com a decadência comercial da nossa base econômica.

Para não perderem de todo o sorriso que atribuíam à cidade de seu nascimento ou de convivência nem sempre salutar, os mesmos senhores sisudos conseguiram transformar a luta pela indenização devida pelas terras perdidas para o Acre em tábua de salvação e se puseram a alavancar verbas federais por conta da antiga revolta acriana, mas os recursos que chegaram aos cofres públicos não davam nem para pagar o funcionalismo.

Depois foi a vez da “nova batalha da borracha” que haveria de soerguer nossa economia ainda mais debilitada. Ao que parece, para alguns dos interessados mais eufóricos na tal campanha, o verdadeiro desejo era retomar o luxo e a luxúria de anos passados, tão somente, mas a tentativa foi frustrada.

Quando tudo parecia perdido e a pasmaceira tomava conta da cidade ainda bem arruada, casario elegante e cheio de charme, mas sem oportunidades para os jovens e poucas possibilidades de sobrevivência para as famílias que aqui permaneceram, pois muitas levaram malas e cuias que lhes restaram para residir no Sul do País… quando tudo parecia perdido eis que surge a Zona Franca de Manaus como novo alento aos que padeciam no isolamento.

O comércio e a indústria floresceram. Havia coisa boa chegando, mas havia quinquilharia tomando conta das calçadas e inúmeras fachadas de belos casarios sendo deformadas em nome do “novo progresso”,somente para atender caprichos dos senhores do polo de transformação econômica que se instalava. Tudo foi de tal ordem poderoso que conseguiu transformar até o paladar tradicional que a cidade conhecia: em lugar de peixarias e pequenos bares, cafés, botequins, padarias, docerias e sorveterias de frutas regionais, vieram as churrascarias, pizzarias, temakis e outras coisas extravagantes.

Mesmo assim Manaus não perdeu de todo o seu sorriso, mas foi guardando lentamente o brilho dos olhos e segue esperando a tempestade passar.

*O autor é advogado, membro da Academia Amazonense de Letras; foi secretário de Cultura do Amazonas por mais de 20 anos

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