LOURENÇO BRAGA – Conversa com José Braga

 

Lourenço Braga

 

Estas linhas, que sequer se aproximam da beleza do que produzes retirado de teu coração sempre generoso, começaram a ser escritas para festejar teu aniversário, 15 de fevereiro, mas as recolhi quando Robério, o caçula de Sebastiana e Lourenço, leu para mim o que deixara brotar de seu amor, e o fiz por respeito ao mais novo e à beleza de sua pena, poética e carregada de carinho e respeito por quem é mestre de todos nós. Volto a tentar no correr desta semana, com a simplicidade de quem propõe uma conversa entre irmãos.

Não sei muito para falar do tempo do Boulevard Amazonas, do sobrado onde nasceste trazido ao mundo pelas mãos carinhosas de dona Eudócia, parteira que também a mim me recebeu depois de ter provocado, tempo antes, o primeiro choro de Maria Justina, a “menina dos lacinhos” que jamais usou, preferindo o futebol, o acordeom, o piano e o bandolim. Lembro da casa, ali onde hoje reside o amigo Maneca, irmão do Cláudio Chaves, com vasto quintal e mangueiras que o cobriam de sombra para João brincar de futebol, às vezes com bola de sernambi (pele de borracha) ou de meia, desde cedo vocacionado para transmissão do jogo como se com ele estivessem outros mestres da bola, como Bigode, Ademir, Barbosa, Juvenal, Baltazar ou Friaça, até que um dia sofreu corte profundo no pé ao pisar em caco de vidro de perfume no rego por onde escoavam as águas de chuva, cujos curativos ficaram a cargo de nosso comandante, no retorno de sua faina no navio atracado ali ao lado da Maloca dos Barés. Era também o lugar em que nosso mais velho caminhava, ao início das manhãs, lendo em voz alta textos que precisava aprender para as aulas do Colégio Dom Bosco, como também fazias para honrar o que te ensinavam, como a ele, desde o Grupo Escolar, com dona Sebastiana Braga, até o Colégio Estadual.

Mas dali lembro de teus passeios de bicicleta, com alguma preferência pelas cercanias do início do Seringal Mirim, por perto da casa de dona Clotilde e logo depois do Entroncamento onde era possível subir no bonde dos Bilhares, ou no de Flores, para ir ao centro da cidade ou, em sentido contrário, para visitar a casa de nossa Dinda, mesmo aquela que, coberta de palha, substituiu a elegante e bela, com telhas de Marselha e piso de pinho do Paraná, derrubada pelo poder público com prejuízo jamais ressarcido a pretexto de construir ali por perto rua estreita e acanhada para permitir chegar à igreja de São Geraldo e à avenida João Coelho, hoje Constantino Nery. E recordo também, desse tempo, tua alegria quando chamado para dormir na casa de Alaíde, nossa Lalá, servidora do Juizado, tua apaixonada madrinha que, mercê da bondade divina, dividiu contigo, e conosco, as muitas alegrias de tua caminhada jovem e adulta.

Fomos depois morar na Avenida Ayrão, em casa também alugada, ao lado de dona Rosa, tia do Ronildo, de dona Isaura, da Cotinha, moça especial que, como a Raimunda do Dedé, não saiu da infância em seu desenvolvimento intelectual, onde sempre tínhamos dona Nazaré Assis sentada na raiz de bela e grande árvore frontal à sua residência, ao lado de Cleide e Neide, belas jovens filhas de dona Elita, que trabalhava no Departamento de Estatística, próximo aos Piola, depois grandes atletas do futebol, como fora seu pai, e, na esquina, perto do Francisco, do Nonato, do Gilberto, do Zeca, do Mário e da Marília, todos que compunham o que chamávamos de “pessoal da casa do canto”, alguns destacados funcionários do Banco do Brasil.

Era dali que saias, algumas tardes, com teu violino à mão, para as aulas com dona Stella Mota, que bem depois foi morar bem perto do mercadinho da Cachoeirinha, ao final da ponte de ferro, e para onde eu também me deslocava para estudar bandolim, que o teu instrumento ainda não era possível a meus braços pequenos, mas ali, ao que lembro, já se manifestava em mim forte desejo de seguir-te os passos, nunca levado por sentimento menor qualquer mas, sempre, pela admiração, pelo respeito e pela liderança de ainda hoje. Recordo que gostava de ouvir teus estudos, o arco produzindo nas cordas do bem afinado violino sons maviosos que recolhias da leitura das notas escritas nas partituras de que nossa mestra não nos deixava afastar, com uma declarada proibição de tocarmos “de ouvido”, para não comprometer a qualidade e a intensidade dos estudos, que aliás continuaste, anos depois, no Rio de Janeiro, fazendo-te Mestre, mesmo que, em desobediência, não te tenhas furtado a algumas peças não clássicas que belas jovens tiveram a ventura de ouvir, em serenatas de que participei algumas vezes.

Era também dali que te via sair para jogar futebol no campo da Coréia, onde hoje está o hospital Getúlio Vargas, como registrou Robério, ou, aos domingos, para o do General Osório, em frente ao que agora é o Colégio Militar de Manaus, onde ocorriam partidas contra times de outros colégios, o Dom Bosco e o Brasileiro, assim como dos campeonatos internos do Colégio Estadual, quase sempre vencidos pelo Luís Silva, time que defendias junto com Mário China, Kid, o goleiro, Fernando Perez, irmão do Danilo, e que muitas vezes disputou com o defendido por João e por Luís Saraiva, ambos depois transformados em cronistas esportivos e comentaristas de futebol, uso de microfone que também experimentaste na Rádio Baré, do Baraúna e do Jaime Rebelo. Não havia jogo que pusesse em desalinho os claros cabelos que mantinhas penteados e cuidados com produtos apropriados e te impunhas no meio de campo, um “center half” sempre atento e elegante nos dribles desconcertantes e nos passes que punham em situação favorável os atacantes em cuja linha o Perez se destacava. Assim era no Nacional Futebol Clube, igualmente.

Foi nessa época que disputaste corrida pedestre de que João foi obrigado a desistir ao chegar perto de nossa casa porque o solado de seu velho tênis não resistiu ao esforço que o corredor lhe impôs, deixando o rapaz triste e bastante aborrecido. O teu sapato felizmente permitiu que chegasses ao fim do percurso, em que, aliás, havia um jornalista chamado Godot que se orgulhava de sempre ser o último, posição que não admitia dividir com quem quer que fosse.

Fomos morar na Marcílio Dias, em sobrado da marcenaria dos Queiroz, ao lado de onde residira o velho Lourenço quando viúvo e presidente do Sindicado dos Taifeiros, e ali havia, como ainda há, grande escada que terminou sendo testemunha silenciosa de fatos importantes, alguns até pitorescos como a queda de uma tartaruga que nos mandara papai, de viagem pelo Juruá, provocando barulho ensurdecedor e assustador em plena madrugada. E nesse tempo fui ser teu contemporâneo como estudante ginasiano, convenientemente aprovado no Exame de Admissão.

Calouro, não fui comunicado por ti sobre o dia do temido batismo, o trote de então, com o que cumprias com rigor a função de veterano, e então tive meu corpo todo pintado com tintas de diferentes cores e matizes, para depois ser jogado no chafariz da praça da Polícia, em frente ao Colégio Estadual, em festa memorável, embora nada agradável para os recepcionados. Nessa época, presidindo o Grêmio, participaste do comando de greve que fechou as portas do prédio, impediu a entrada de alunos, servidores e professores e exigiu a demissão de Diretor que “ousara” tentar impor regras de disciplina incompatíveis com a história da Instituição. Não houve força policial que intimidasse os estudantes e o governador Plínio Coelho acabou por receber comissão por ti liderada em reunião que resultou na exoneração do diretor e na nomeação do professor e jovem padre Manoel Bessa Filho, que depois se faria Juiz e professor de Direito, como também fizeste.

Amante da beleza, incentivaste a candidatura, e consequente vitória, de Miss Terezinha Morango, do Amazonas e do Brasil, e de Darcley de Paula, Rainha dos Estudantes, e à maneira de como se dera com João, foste eleito Presidente da União dos Estudantes Secundaristas do Amazonas, a nossa UESA, de tantas tradições, em eleição conturbada que teve de ser suspensa à vista de uma briga generalizada que acabou por causar prejuízos materiais ao auditório da Escola Técnica Federal. Foi o que permitiu que visitasses, no dia seguinte, em companhia do padre Bessa, todos os colégios religiosos cujos delgados acabaram por te garantir a eleição, tal como se esperava depois da reunião havia em nossa casa, na Marcílio Dias, com a presença de Rui Costa, do Batelão, o Lyra irmão do Benedito, do Bessa, dentre outros, e de nosso comandante Lourenço. Eleitos, foram alguns membros da nova Diretoria para o Congresso da União Brasileira, a UBES, em Fortaleza, mas nem pudeste desfrutar da beleza do Encontro até o final, obrigado a retornar às pressas para evitar um “impeachment” que te preparavam alguns que aqui permaneceram, comandados por teu vice-presidente.

Dali saíste para a política partidária e terminaste suplente de Deputado Estadual, na bancada do Partido Libertador, que fazia parte do arco de alianças de Plínio Coelho, governador de dois mandatos, um dos quais interrompido pelo movimento de 1964 no País. Mas isso e o que mais há a dizer será objeto de próxima conversa, sob pena de meus eleitores, já tão poucos, desistirem por cansaço.

*O autor é membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas e ex-reitor da Universidade do Estado do Amazonas (UEA).
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