ARIOSTO BRAGA -De “Málúù Dúdú – Boi Preto” a “Perreché da Puraca”: que futuro queremos para o Festival de Parintins?

É fato corrente entre os parintinenses a máxima que diz: “Festival se ganha com uma só toada”.

Ariosto Braga

E tem sido assim ao longo dos anos, pois muitas vezes se viu Caprichoso e Garantido superarem-se na arena e vencerem a disputa embalados pelo som contagiante de uma só toada, geralmente a melhor do respectivo ano.

Tudo indica que agora em 2024 não será diferente, embora o embate se prometa vibrante entre duas belíssimas obras musicais.

Pelo lado do Caprichoso, reina absoluta na liderança a obra musical “Málúù Dúdú – Boi Preto”, de autoria dos compositores Adriano Aguiar, Gean Souza e Tomaz Miranda. A obra, em estilo bem criativo e diferente de tudo que já se viu em festivais passados, apresenta uma ousada fusão entre o ritmo ijexá e a toada parintinense, resultando um magnifico efeito sonoro no casamento com a bem elaborada letra da música, o que, sem dúvida, levará a Galera Azul ao delírio na arquibancada do bumbódromo.

Para quem não conhece, o ritmo ijexá, utilizado na vibrante “Málúù Dúdú”, tem origem iorubá e foi trazido da África pelos africanos escravizados, sendo tocado, até hoje, como símbolo de resistência nos terreiros de candomblé da Bahia. O ijexá, inclusive, que chegou ao carnaval através dos afoxés baianos, criados no final do século XIX, chega agora, surpreendentemente, ao Festival Folclórico de Parintins através da marcante obra musical de Adriano Aguiar, Gean Souza e Tomaz Miranda.

A letra de “Malúù Dúdú” – que os próprios autores traduzem no título como “Boi Preto” – deixa à mostra a espiritualidade presente na obra, quando faz referência ao alabê (do iorubá alagbê), que é o ogã (sacerdote escolhido pela divindade ancestral orixá) responsável pelos instrumentos musicais e pelos toques rituais sagrados do candomblé, tudo em perfeita harmonia com o som dos atabaques e agogôs realçados na música.

Como justificativa do ritmo ijexá utilizado na obra, “Málúù Dúdú” fala exatamente de resistência, quando expressa em seus versos que “A ponta do chifre é a lança que avança / Contra o racismo e a intolerância / A porteira de opressões não aguenta / Meu boi é Agbara, ninguém enfrenta!”, deixando claro que o Boi Preto de Parintins tem a força e o poder (Agbara, em iorubá) da cultura afro-brasileira.

Música forte, com batuque contagiante, “Málúù Dúdú” promete fazer sucesso na arena do bumbódromo de Parintins, e, inclusive, já liderou o ranking das músicas mais ouvidas em Manaus, sendo hoje, na semana entre 7 e 13 de junho, a segunda mais tocada dos bumbás parintinenses, embora permaneça com mais plays na plataforma de streaming Spotify.

Já no lado do Boi Garantido, o destaque do álbum é a toada “Perreché da Puraca”, obra musical escrita pelos compositores Bruno Bulcão e Jaércio Curuatá, que, de forma surpreendente, ultrapassou “Málúù Dúdú” e mantém a liderança no “Local Pulse Manaus” do Spotify desde a semana de 10 a 16 de maio do corrente ano.

“Perreché da Puraca”, ao contrário de “Málúù Dúdú”, é toada no estilo “tradição”, e promete levantar a Galera Vermelha no Bumbódromo de Parintins. Em sua letra, os compositores exaltam seu amor pelo Garantido de uma forma bem raiz, iniciando com os versos: “Na aba dessa barra, eu me criei / Não julgue a minha pretensão / Mas num laço fraterno, eu ergo meu boi / Garantido é amor, meu reverso de dor / Que a trama da existência me presenteou”.

A impecável combinação da letra com a melodia permite que o ritmo cadenciado da batucada do Garantido liberte sentimentos de euforia no povo da Baixa do São José, que se declara autêntico Perreché da Puraca. Com os surdos batendo pesado, a leveza da toada “Perreché da Puraca” permite sentir a vibração de todos os instrumentos tradicionais da batucada do boi, o que dá um toque de autenticidade à toada, rica nas famosas viradas da caixinha, na marcação do agogô, no sacudir do rocar e nas originais e marcantes palminhas que afinam o ritmo pelas mãos dos batuqueiros.

“Meu boi tá solto no meio do povo / E arrasta um pedaço de mim / Mas se falhar a minha voz / As lágrimas cantam por mim / Eu tô, tô balanceado / Eu tô, eu tô, eu tô, eu tô / Tô balanceado”. Aqui, nesses versos, os autores de “Perreché da Puraca” exprimem a paixão de ser torcedor do Garantido, aquele que, mesmo sem voz, é capaz de expressar seu canto através do corpo e da alma, como demonstrado no verso “Tô balanceado”, pelo qual o torcedor se entrega incontidamente à paixão de seu boi.

Perreché, uma expressão originalmente conhecida como uma corruptela de “pé rachado”, era como se chamava o parintinense da várzea, aquele herói da Amazônia que mergulhava seus pés descalços na lama das margens dos rios, o que os deixava com os dedos deformados e com a sola áspera, grossa e rachada.

Já o termo “puraca”, segundo os compositores Bruno Bulcão e Jaércio Curuatá, é uma “expressão coloquial” do caboclo parintinense que significa tudo aquilo que é muito puro, verdadeiro, original. Assim, a expressão “Perreché da Puraca” é a afirmação da identidade, da tradição e da raiz que o Garantido tanto prega e de fato resiste com a sua musicalidade, o que dá orgulho à comunidade da Baixa do São José em celebrar a cultura de sua festa e de seu povo.

Então, caro leitor, deu para sentir o clima?

Claro que não, pois o clima vai esquentar mesmo é na disputa entre Caprichoso e Garantido, na Arena do Bumbódromo de Parintins.

Mas, a pergunta que se faz no título dessa reflexão já pode começar a ser respondida no íntimo de cada um de nós, pois, de fato, como é sabido que “Festival se ganha com uma só toada”, o “confronto musical” em si somente vai ocorrer nos dias 28, 29 e 30 de junho, datas marcadas para a competição entre as duas agremiações folclóricas.

Como se buscou demonstrar acima, está-se diante de duas belíssimas obras musicais, cada uma a seu estilo, mas ambas, com toda certeza, com capacidade mais que suficiente para balançar suas respectivas galeras na arena da disputa.

Quem vencerá? “Málúù Dúdú – Boi Preto” ou “Perreché da Puraca”?

Evidente que a resposta somente ocorrerá no dia 1º de julho próximo, quando as notas dos jurados serão divulgadas no Bumbódromo de Parintins.

Mas, não é isso que se quer saber. O que se questiona, aqui, é o futuro que queremos para o nosso Festival Folclórico. Devemos mesclar nossas toadas com outros ritmos, como “Málúù Dúdú – Boi Preto”? Ou devemos focar no ritmo tradicional, como “Perreché da Puraca”? E os temas e letras de nossas músicas, podem ser transversais e abranger outras culturas? Ou devem distanciar-se o mínimo possível de nossa cultura regional?

Não se pode negar que essa escolha caberá exclusivamente a todos nós, amazonenses, e em especial ao povo parintinense, povo culto, letrado, e protagonista de um dos maiores festivais folclóricos do planeta.

Mas, vale também escutar e refletir sobre o que vão dizer os julgadores do 57º Festival Folclórico de Parintins, pois, como reza o dito popular, “A voz das urnas é a voz do povo”. E os jurados do Festival Folclórico de Parintins, escolhidos criteriosamente pelas duas agremiações folclóricas, inegavelmente farão refletir em suas notas a voz de nosso povo na escolha do boi campeão do festival.

Independentemente do resultado e do boi preferido de cada um, ouçam sem moderação “Málúù Dúdú – Boi Preto” e “Perreché da Puraca”. Vale a pena ouvir, cantar e dançar ambas as músicas, pois são duas belíssimas obras, ricas em letra e emocionantes no balanço e na melodia.

* O autor é professor universitário, advogado e compositor.

 

 

 

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