LOURENÇO BRAGA – Revisitando a vida
A cadeira do escritório que o recebe diariamente é testemunha muda de sonhos, de desilusões, de esperanças, de encontros e desencontros, de alegrias e de tristezas, e é também conselheira e amante que lhe abre os braços em carinho de acalanto e de encorajamento, às vezes bússola a fazer brotar do próprio espírito o norte possível, mesmo quando não o desejado.
É ali, na solidão de si mesmo, que cuida de conversar, construir, destruir, remontar, conferir, novamente olhar e sorrir, quando não sejam lágrimas a escorrer em seu rosto, brotadas do coração. Ali é a um tempo assento e mundo, algumas vezes noite mesmo que dia e as conversas se fazem francas, sem freios que não os dele próprio, impostos pelo medo da angústia, do não-ir, do não-querer, do não-ser.
Não raro põe-se a revisitar o ontem e de lembranças sorri quando lhe chegam aos olhos imagens de brincadeiras inocentes nas ruas das casas onde morava com pais, irmãs e irmãos, visita diária de tia que ajudava na educação enquanto a mãe precisava ausentar-se do lar por horas determinadas, para cumprir a árdua tarefa de ensinar filhos que não eram seus, escola pública em velho prédio com os poucos recursos materiais e didáticos disponíveis, mas que a magia do amor ao fazer transformava em paraíso e onde também foi buscar o conhecimento dos tempos iniciais, desde as letras primeiras até a preparação para o plano seguinte que terminaria por levá-lo à Faculdade.
A mão materna que o conduziu dias seguidos no piso de barro que levava ao Grupo Escolar era símbolo de segurança e de amor, como foi, afinal, por longos anos até que aos 98 de sua permanência por aqui foi chamada para escolas outras, com novos alunos, filhos de idades distintas, talvez nem crianças. E voltar ali é rever seu sorriso, farto e franco, a ensinar as letras e os números, a desmistificar lugares e vultos de tempos de antes, a falar do corpo humano, das plantas, das flores, dos animais, a ensinar boas maneiras, em processo de educação ampla que brotava de vocação inquestionável que a fazia feliz. E jamais qualquer benefício na sala de aula pelo fato simples da filiação. Mestra por excelência, o quanto plantou até hoje viceja no terreno já nem tão bem tratado pelo tempo mas que deu frutos, muitos que parecem ter sido de bom proveito.
Do pai, líder classista, político, jornalista, marítimo, comissário de bordo, as lembranças nascem do quanto aprendeu com os exemplos diários do trabalho, da seriedade, da honestidade, da humildade e do respeito a si e aos outros, próximos ou distantes, incapaz da injúria, da ofensa, do agravo, cultor do perdão, da compreensão, da atenção sobretudo a crianças, a idosos e aos mais necessitados, com quem sabia dividir com prazer inconteste o quase sempre não muito de que dispunha e que ornava de amor verdadeiro.
Nas duas viagens que com ele realizou pelo rio Purus, na imensidão deste Amazonas, no navio a lenha “Industrial”, de propriedade de J. A. Leite, foi possível aprender o que se não encontra em livro qualquer mas praticado a cada instante com trabalhadores e com pessoas que nem conhecia, sobretudo crianças, a cada parada para abastecer de madeira a ser queimada na fornalha do motor e para deixar mercadoria ou receber produto, normalmente borracha e castanha que daqui seriam depois exportadas em processo econômico que muito poucos enriquecia. Dele não se ouvia palavra áspera qualquer nem se via gestos bruscos ou ofensivos, mesmo quando precisasse restabelecer o equilíbrio de relação humana a seu redor. E o carinho com que tratava os que chegavam ao navio, para visitar ou para viajar, jamais fazia diferença de qualquer natureza.
Olhos fitos no passado, em visita que vai longe no tempo, revê os ensinamentos dos irmãos, mais velhos e mais novos, e constata com humildade o quanto lhes deve, a todos. Os dois primeiros, líderes estudantis que experimentaram a política partidária, em pouco tempo desiludidos ante conflitos que ali são comuns. Um, primeiro orador secundarista do Brasil, por duas vezes, primeiro aluno no curso de gradação em Direito e advogado exponencial no tribunal do júri, procurador, conselheiro e prefeito; outro, poeta e violinista em grau superior, doutor em ciências jurídicas, desembargador federal, juiz de invejável equilíbrio. Professores e cultores do Direito, magníficos exemplos, exigência ímpar.
Assistente Social, exímia declamadora de poemas vários, artífice do verbo, deu mostras significativas de dedicação materna, pura herança, a irmã mais velha. A mais nova, musicista como a outra, mestra em meiguice e ternura, fez-se médica e anjo no tratamento de crianças sempre em hospital público, e acabou traída por um câncer que parece ter justificado sua prematura convocação para clínicas de planos outros da vida.
O mais novo, desde cedo apegado às letras, de então e de antes, pesquisador por excelência, pulso firme no caminho, foi calouro em instituições tradicionais e logo despontou em liderança, fazendo-se respeitável historiador, também professor, mestre em Direito pela Universidade que ajudou a criar, ás no plano da cultura e do saber.
Muito a seguir. Muito a cobrar de si mesmo, não por temer permanecer à sombra, porque vigorosas e fortes as árvores, mas por saber que lhe competia o bom uso dos frutos, a boa cópia dos exemplos, e trilhar o que se lhe demonstrara. Em meio à caminhada, eis que um acidente comprometeu a integridade física, mas as preces e as mãos de todos, os sorrisos jamais negados, a confiança e o incentivo sempre postos, fez possível pular o escuro e ir à luz para fazer a vida seguir adiante. É daí o fortalecimento em uma fé que se não quebra jamais quaisquer que sejam os temporais. E foi cuidar de praticar o que aprendeu, aprendendo também consigo mesmo nos tropeços e nas conquistas, cada vez mais convencido de que entregar-se a doar é ajudar a construir, a fazer mudança, a crescer, a lutar e a retirar da vida o quanto de bom ela tiver a oferecer.
Novas mãos amigas se juntaram, a da companhia sempre presente em décadas que se sucedem, partícipe e cúmplice, a de filhos, três, que têm seguido, mercê da bondade maior, os trilhos da retidão, da dedicação e do cultivo do bem. É o que também se dá com netos, sete, formados e em formação, já vencedores, todos eternas crianças no cantinho do peito onde se guarda o amor.
Em honra de tradição, encontrou no magistério o lugar certo para o plantio e com a dedicação herdada contribuiu para formar gerações de advogados, juízes, desembargadores, conselheiros, promotores, ministros e procuradores, no que também se transformou, e jamais usou qualquer dos cargos públicos que exerceu senão para servir, sem deles servir-se.
Secretário de Estado seguidas vezes, foi desafiado a liderar equipe de sonhadores, trabalhadores do saber, na construção da primeira universidade estadual, seu primeiro reitor, marco histórico na transmissão do Conhecimento na criação de oportunidades, na realização de sonhos e na formação de jovens de diferentes idades em todos os municípios do Amazonas: a obra de uma vida.
Esse sou eu!
* O autor é membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas e ex-reitor da UEA