LOURENÇO BRAGA – 20 de novembro
O Brasil guarda em sua história mancha social de que jamais se livrará, quando aqui manteve sistema econômico que se valia do trabalho escravo, declarada e oficialmente, é possível dizer, explorando a níveis de nenhuma decência mão-de-obra trazida em porões fétidos de navios negreiros, acorrentados e em condições de higiene abaixo de qualquer nível de desumanidade.
Vindos da África, berço da civilização, logo que desembarcados eram postos à venda como se em leilão público, à maneira do que ainda hoje se faz com objetos e coisas de muito ou pouco valor, de propriedade pública ou privada, e os compradores interessavam-se pelos mais fortes fisicamente, mais jovens e aparentemente saudáveis, presunção que muitas vezes decorria da análise da arcada dentária, não raro interessando-se também por mulheres de tenra idade que, transformadas ou não em mucamas, muitas vezes seriam abusadas sexualmente, tratadas proporcionalmente ao prazer doentio de seus “senhores” e até de “feitores” que, aqui e ali, se transformavam em algozes carrascos a pretexto de manter a disciplina.
Foram esses homens e essas mulheres, pretos e pretas, aos quais era negada a mais singela dignidade, que por aqui fizeram o trabalho humano no campo e construíram, à custa de muito suor, muita dor e sofrimento, as bases verdadeiras do crescimento do País que hoje temos.
Não foram poucos os que sucumbiram nas senzalas que lhes eram destinadas, verdadeiras prisões, mas também foram muitos os que, em atos heroicos de resistência, fugiram, embrenhando-se na escuridão da mata, escondidos dos feitores com suas polícias, estes sim porcos abomináveis, desprovidos de qualquer senso de humanidade.
Os que logravam êxito na fuga, perseguidos como animais duramente caçados, acabavam por reunirem-se escondidos em casebres que viravam galpões e se transformavam no lugar da liberdade. Alguns desses sítios foram crescendo, na medida em que novos resistentes ali chegavam, fugitivos das senzalas e das fazendas, e as festas e os cânticos que ali passaram a ser entoados iam perdendo progressivamente a dor e o escuro das festas de antes, e em todo tempo fazia-se, como até hoje, a homenagem e o culto da crença. E tudo se dava sob as bençãos de Ogum, o guerreiro valente, da beleza de Oxum, filha de Iemanjá, a rainha das águas, de Odoiyá, suprema dos rios, e tantos e muitos Orixás.
Eram sítios que, em verdade, não paravam de crescer, de expansão permanente, ainda que sem muita organização, e no nordeste brasileiro, ali pelas bandas da Capitania de Pernambuco, um especialmente se notabilizou, que inicialmente foi liderado por Ganga Zumba, segundo alguns historiadores, e que depois teve o comando de Zumbi, que nasceu livre e foi entregue a um sacerdote, com quem aprendeu a língua pátria, além do Latim, de quem fugiu aos 7 anos e que teria chegado a receber do Imperador um convite para tornar-se súdito do Reino que combatia, unindo-se ao novo governador da província, o que rejeitou.
Nascido no quilombo dos Palmares, em terra que hoje integra o Estado de Alagoas, o bravo guerreiro liderava os ex-escravos que ali residiam, cuja liberdade pretendia fosse aceita pelo governo e, apesar de jovem, teria enfrentado o tio na condescendência com o governador para impor o retorno de fugitivos a seus antigos “donos”, respeitados os demais. E assim se teria feito, verdadeiramente, símbolo da resistência negra, líder de exército que combatia os representantes do Poder instalado, não fazendo concessões quanto ao direito de ser livre junto com seu povo.
Do outro lado, soldados portugueses ou brasileiros a soldo daqueles combatiam permanentemente para capturar os que, por serem pretos, eram havidos como escravos e propriedade dos donos de engenho, da terra concedida, do dinheiro e de todas as “benesses” consequentes.
Não eram poucos os que defendia. Há notícia de que mais de dez mil eram os habitantes palmarinos, crianças, homens, mulheres, idosos, muitos que haviam conseguido escapar do ódio repugnante dos feitores, outros que deles já descendiam, em processo natural de renovação da vida humana.
Palmares foi duramente atacado pelo exército comandado por Domingos Jorge Velho, mas a destruição que ali se deu não conseguiu vencer o bravo comandante Zumbi, que se refugiou na mata , com alguns comandados, até ser traído e morto, aos 40 anos, em 20 de novembro de 1695, em emboscada favorecida pela traição. Seus algozes cortaram-lhe a mão e lhe deceparam a cabeça que, depois de salgada, foi exposta em praça pública no Recife.
Zumbi dos Palmares foi morto pela violência humana que permanece sacrificando negros e negras neste mundo até hoje, mas sua liderança e sua coragem dele fizeram símbolo da resistência de uma raça que é origem, que é exemplo de força, de vigor e de vontade de ter respeitado o direito simples de ser igual.
É assim? Infelizmente não!
Aqui já fiz registro da barbárie praticada nos Estados Unidos da América do Norte, provocando revolta de homens e mulheres de todas as raças, quando um cidadão foi acusado por “devotados” policiais de furtar 20 dólares e, ato contínuo, por seus algozes jogado ao chão e morto por força de um joelho que lhe comprimiu o pescoço, com mais de 100 quilos, até seu suspiro final.
Também em nosso “pais tropical’ de que falou o poeta, João Alberto foi espancado por “zelosos” seguranças de um supermercado confundido com um assaltante, em plena luz do dia, à vista de todos e muitos que ali se encontravam e na frente de sua esposa que gritava repelindo a injusta acusação, até que parou de respirar e, sem força qualquer, morreu.
Para ficar apenas em 3 exemplos, um motorista que cometeu a gravíssima infração de avançar o sinal vermelho, foi preso e conduzido para a parte traseira do veiculo policial (onde deveriam ser guardados até muitos dos bandidos que por aí transitam livres e até sob aplausos) e, algemado e amarrado, foi levado para a frente de uma delegacia de polícia, obrigado a suportar o ódio e a estupidez de um de seus algozes que, irritado com sua reclamação por não o tirarem dali, despejou gás lacrimogênio no veículo e fechou as portas, instalando o que poderia competir, nos dias atuais, com a câmara de gás que os americanos já usaram para consumar pena de morte decretada por juízes em processos regulares por crimes cercados de crueldade e, mesmo assim, depois de vencidos os recursos cabíveis, inclusive o pedido de perdão.
Faz pouco e jovens entregaram-se a badernas na noite e puseram-se a atirar, felizmente para o alto, em demonstração de aparência de um poder que nem eles nem ninguém possui, e a esse respeito eu ouvi, estupefato, tratar-se de “brincadeira de adolescente”.
Aqueles 3, os mortos, eram pretos, estes últimos, também três, “brincantes”, não de cor como costumam dizer!
Deste canto, com a humildade dos que creem, declaro a esperança de que um dia todos nos unamos à resistência.
VALEU ZUMBI !
* O autor é membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas e ex-reitor da UEA
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