ROBÉRIO BRAGA – Guardando no baú

 

Não ouso titular de “Baú de ossos”, que é um nome grandemente sugestivo e apropriado para obra de recordações, tal como fez Pedro Nava ao livro de suas memórias, o bom mineiro que, estudando no Rio de Janeiro, foi aluno exemplar de Álvaro Botelho Maia (o poeta, governador e senador amazonense) e sobre ele deixou curta, mas bela crônica, digo que não ousei dar o mesmo nome a este artigo que traduz o momento em que trato de recolher o que se deu comigo neste ano que vai se encerrando, e em relação ao qual algumas pessoas andam declarando não ter saudades. Para mim e para os meus, entretanto, foi ano em que as realizações falaram mais alto, não me escuso em dizer.

O tempo me fez entender o que se passa conosco e a separar o que merece ser guardado como memória e o que deve ser riscado como se nunca tivesse acontecido. Deste balanço, que precisa ser feito sem paixão ou revolta, é que vão emergir as passagens mais significativas que merecem ficar reservadas para quando os momentos de redenção do passado permitirem que elas brotem como lembranças perfumadas e aplaquem as saudades.

Todos nós temos o que guardar em aconchego, preservando os detalhes em que foram realidade, assim como aspiramos novas auroras resplandecentes quando se anuncia o Ano Novo, como se fosse possível conviver com as flores sem acompanhar a perda do brilho das suas folhas ou com as rosas sem ser tocado pelos espinhos. É preciso compreender que caminhar pelas alamedas ensolaradas não nos protege das borrascas inesperadas às quais nem sempre respondemos com fidalguia e lhaneza para conseguir superá-las em bom termo, afinal, como cantou o poeta, “o inesperado causa uma surpresa” e, talvez por isso, não consigamos estar preparados para as intempéries e esperamos que a vida ofereça só alegrias que não tenham fim.

De mim para comigo, quando vai chegando a época das festas natalinas e de novo ano, por herança dos povos europeus, confesso que passo a borracha naquilo em relação ao que me lastimei, com o que me senti incomodado ou ferido, assim como nas coisas que não consegui evitar e não gostaria de ter vivido, precisamente para não permitir que estes atropelos se atrevam a pretender ocupar lugar no meu baú, para que não ousem marcar presença eterna na memória e voltem intrépidos a cada vez que me recordar do que vivi.

Eis o que aspiro possa suceder com todos os leitores que me privilegiam ao acompanhar o que publico neste canto de página, passados pouco mais de cinquenta anos de quando lancei meu primeiro artigo, pelos idos de 1969, seguindo praticamente sem cessar tal como pretendo possa permanecer por mais longo tempo.

O que se dá comigo, a cada fim de ciclo, devo confessar para dizer a verdade, não é uma renovação do baú, mas tão somente um agasalhamento das coisas recentes junto àquelas recém passadas e que se vão somar, bem arrumadas, ás do antanho mais distante, porém presentes, ficando todas reunidas no baú que vem comigo de outras encarnações, não importando os sonhos que não transformei em realidade nem as esperanças que vi esmaecer, de modo que possa prestar contas à minha consciência de como respondi ao livre arbítrio que me foi concedido.

É hora, pois, de abrir o baú e acomodar os novos guardados, que sejam somente os bons (no meu caso, infinitamente bons e belos) os que representam a construção e a reconstrução interior, sem pensar nos ossos que representam a dor (abençoadas dores do aprendizado), mas sentindo o sol que ilumina o dia e faz arder de alegria os corações.

*O autor é advogado e membro da Academia Amazonense de Letras

 

 

 

 

 

 

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